Registros de racismo têm explosão de 77,9% em 2023 em meio a queda de injúria racial
Pesquisadora diz que, apesar do aumento, não é possível falar em um combate mais eficiente ao racismo. Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostram também subnotificação nos casos de homotransfobia
“Macaca, preta, imunda”, dizia o texto de um e-mail encaminhado para a vereadora de Joinville, em Santa Catarina, Ana Lúcia Martins (PT). Primeira parlamentar negra eleita no município de maioria branca — lá apenas 4,1% da população é preta, segundo o Censo 2022 — ela foi alvo após defender uma colega também parlamentar. O caso é um exemplo dos 11.610 registros de racismo ocorridos no ano passado. Em relação ao ano anterior, houve uma explosão de 77,9% nas notificações.
Para Juliana Brandão, pesquisadora sênior do FBSP, os dados sobre racismo mostram uma fotografia do momento atual: uma tendência de aumento que se mantém desde 2019.
O cenário atual de aumento nos registros de racismo pode ser explicado por um conjunto de fatores, afirma Juliana. Entre elas, a proclamação da Década Internacional dos Afrodescendentes pela Organização das Nações Unidas (ONU) e a criação do Ministério da Igualdade Racial pelo governo Lula (PT). Outro ponto, defende, é a equiparação da injúria racial ao racismo por meio da lei 14.532/2023.
A mudança legislativa tornou mais severa a punição para a tipificação penal de injúria — não cabendo mais fiança e tornando o crime imprescritível.
Ela conta que todos os estados informaram sobre os casos de racismo em 2023, o que não aconteceu em 2022, quando São Paulo, por exemplo, não disponibilizou essa informação.
Se destacam como os locais em que houve maior registro os estados do Rio Grande do Sul (2.857), São Paulo (2.304) e o Paraná (1.606). O último, inclusive, teve o maior aumento de 2023 em comparação com o ano anterior: 630%.
A explosão nos casos de racismo mede o que é enquadrado em critérios objetivos, diz Juliana. Mas há racismo que a lei não consegue abarcar. O Anuário da Violência 2024 mostra que um negro tem quatro vezes mais chances de morrer nas mãos da polícia do que um branco. Das 6.393 vítimas de letalidade policial no ano passado, 82,7% eram negros.
A Ponte contou sobre as histórias de algumas dessas vítimas. Como a de José Marques Nunes da Silva, 45 anos, um catador de latinhas que implorou para não ser morto por policiais das Rondas Ostensivas Tobias Aguiar (Rota), a tropa de elite da polícia de São Paulo. Ele morreu em fevereiro, em São Vicente, no litoral paulista, durante a Operação Verão.
Luiz Fernando Alves de Jesus, 20, também foi morto por PMs da Rota, em janeiro do ano passado, em São Paulo. Três policiais militares foram indiciados por envolvimento na morte. Segundo a Polícia Civil, os agentes executaram o jovem e plantaram uma arma na cena.
“Embora caminhemos para o reconhecimento do racismo enquanto uma violação de direitos, nós ainda não conseguimos criar uma barreira para os corpos negros não continuarem sendo vilipendiados como têm sido, alvos tão recorrentes de violência policial e mesmo de crimes letais”, diz.
Injúria em queda
Houve queda de 14% nos casos de injúria racial. Juliana Brandão avalia que, no debate público, o racismo é o termo mais popular usado para definir situações de discriminação racial, embora a legislação faça a distinção entre injúria e racismo. Para ela, isso reflete também no registro dos dados, ajudando a entender a queda de 14% registrada no ano passado.
A pesquisadora diz haver um contexto mais aberto ao diálogo nos casos de discriminação racial. Isso favorece com que essas ocorrências de fato encontrem uma similaridade naquilo que o Direito prevê. O que não ocorre nos casos de LGBTfobia em que, para a Juliana, há um recrudescimento no debate de gênero. “Ao invés dessa agenda estar mais permeável, ela está mais emparedada”, avalia.
Em setembro do ano passado, a Ponte contou sobre o caso de homofobia envolvendo o funkeiro MC Angell. Ele disse ter sido chamado de “viado chato” por um funcionário de uma padaria na zona leste de São Paulo.
Juliana afirma que pessoas LGBT não estão sendo entendidas como detentoras de direitos e que, por isso, enfrentam dificuldades para encontrar suporte legal diante de violações. Esse cenário ocorre mesmo com o reconhecimento como crime da homotransfobia há cinco anos.
A subnotificação dos casos também chama a atenção da pesquisadora. Para ela, é um indicador de que estamos diante de uma violência ainda oculta e de um Estado inerte em relação a isso.
“Há anos vem se falando que esses dados não traduzem a realidade. Ainda que não tenhamos todas as informações, é assustador o número de casos envolvendo homotransfobia. Mesmo assim, pode ser que o buraco seja ainda mais embaixo, a situação seja ainda pior”, fala.