QUEM TEM FOME NÃO PODE ESPERAR
Governo Bolsonaro insiste na ficção de que somos “celeiro do mundo” enquanto deixa os miseráveis à míngua
Segundo dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, 19 milhões de brasileiros estão famintos e mais de 100 milhões não sabem se terão o que comer no amanhã de incertezas. Pesquisa recente do Dieese revela como essa situação se aprofunda, pois os preços da cesta básica continuam aumentando em todo o país, superando a parcela média do tal “Auxílio Brasil” (substituto do Bolsa Família), que não comprará nem metade da cesta atual.
Mãe desempregada, Sandra Maria de Freitas fala de sua luta diária: “Quando o caminhão passa cedo, dá para pegar coisas boas, pão e mortadela, tá tudo mofado, a gente raspa e come. Tem que desinfetar, mas o gás tá muito caro e com álcool já fui parar no hospital.” Como Sandra, são as milhares de “mães solo” o maior contingente das vítimas da fome. São elas que ficam no aguardo de ossos e pelancas. Com sorte conseguem pé e pescoço de galinha. E as que contam com apoio de ONGs estão nas filas de marmita – “um luxo”, dizem, agradecidas.
O consumo de proteína está cada vez mais raro até para famílias de classe média: o preço médio de 1 kg de carne foi multiplicado por três nos últimos dez anos. E como afirma José Graziano da Silva – ex-diretor da FAO e atual diretor do Instituto Fome Zero –, “crianças que passam fome antes dos 5 anos, se sobreviverem, levarão a marca de desnutrição para o resto da vida, não terão desenvolvimento intelectual e motor normal. Estamos, portanto, condenando o futuro de milhões de brasileiros”.
O que o governo e a sociedade civil estão esperando para agir imediatamente, antes do colapso previsível, com saques, morticínio e violência de todo tipo contra miseráveis e famintos? Esperamos uma réplica sinistra do “caso Manaus”, exemplo típico de omissão e abandono da população no auge da pandemia? Esperamos a condenação do país por crime contra a humanidade?
Quem tem fome não pode esperar. E não devemos apostar em milagres para a eleição em 2022. A hora é agora, de urgência urgentíssima: denunciar a omissão do governo federal e do Congresso, exigir providências relativas a um auxílio emergencial decente para todos que dele precisam (e não apenas para os empregados), mobilizar a sociedade. Os governos estaduais e municipais podem enfrentar a incapacidade e a omissão do principal mandatário ativando conselhos e subprefeituras, programas de transferência de renda, enfim, reativando o refrão do poeta negro Solano Trindade: “Tem gente com fome, dá de comer!”
Isso significa apoio às cooperativas de agricultura familiar, à distribuição de vales alimentação e cestas básicas, à reabertura de restaurantes populares, ao reforço dos Bancos de Alimentação e da merenda nas escolas, aos programas que atendam povos indígenas, ribeirinhos e quilombolas, a uma especial atenção para as ditas comunidades (favelas e outras) e para os que estão morando nas ruas. Necessário, ainda, o encaminhamento de pessoas que hoje vão aos postos de saúde com diagnóstico óbvio: a desnutrição severa.
Éevidente que a grande fome será apenas mitigada com essas ações urgentes, pontuais e solidárias. Para o enfrentamento de suas causas, diante da desigualdade e da pobreza extrema, são indispensáveis reformas estruturais, econômicas, sociais, políticas e ambientais, enfim, um projeto de desenvolvimento sustentável que inclua a reforma tributária e a reforma agrária, sempre adiadas, além de políticas avançadas de educação e saúde para a imensa maioria dos brasileiros – porque a minoria já as tem.
Todos nós, que contamos com o conforto de três refeições por dia, somos também responsáveis. A mobilização deve abranger, além dos aguerridos movimentos sociais e populares (com destaque para o MST e a Cufa), a imprensa, as igrejas, as universidades, entidades de peso, como OAB, ABI, SBPC, CNBB e sindicatos. Os empresários devem ser chamados à responsabilidade na promoção de empregos, mesmo provisórios, no compromisso de evitar demissões e no combate à alta absurda nos preços de alimentos.
As festas de final de ano estão chegando. Justiça e Paz na terra, solidariedade ativa com comida para todos, agora e sempre, assim seja.
Maria Victoria de Mesquita Benevides É socióloga e cientista política, professora titular aposentada da Faculdade de Educação da USP, membro da Comissão Arns de Defesa dos Direitos Humanos
Fábio Konder Comparato É advogado, professor emérito da Faculdade de Direito da USP, doutor honoris causa da Universidade de Coimbra, membro da Comissão Arns de Defesa dos Direitos Humanos
revista piauí