A trajetória, o perfil e o papel dos servidores públicos no Brasil
Categoria enfrenta estigmas, é apontada como vilã quando o assunto é gasto público, mas exerce um função essencial no funcionamento da máquina estatal e no atendimento aos cidadãos
“Se não fosse a estabilidade, ele não estaria aqui sentado com a coragem que ele tem de denunciar isto tudo que está ocorrendo”, disse o deputado Luis Miranda (DEM-DF) à CPI da Covid em junho de 2021, durante um dos depoimentos que marcaram a comissão responsável por investigar ações e omissões do governo na pandemia. Ele se referia à iniciativa do irmão, o servidor do Ministério da Saúde Luis Ricardo Miranda, de denunciar suspeitas de irregularidades nas negociações para a compra de vacinas pelo governo de Jair Bolsonaro.
A fala do parlamentar chamou atenção para um dos vários aspectos que envolvem os servidores públicos, no caso, a estabilidade de emprego que permite uma atuação independente em relação ao projeto político de quem está no poder. Essas e outras questões integram um debate constante no Brasil em torno da categoria, não raro apontada como vilã em um país onde os serviços públicos são alvo de constantes críticas. Abaixo, o Nexo mostra a definição, a trajetória, o perfil, a relevância e as distorções que permeiam o serviço público.
O QUE é um servidor público
As definições de servidor público variam. Há conceituações mais ou menos abrangentes do que esse termo engloba. Num sentido amplo, os servidores públicos podem ser entendidos como aqueles que atuam dentro do Estado ou em funções ligadas a ele para servir à sociedade, ao interesse público.
A figura mais comumente associada à definição de servidor público é o chamado servidor estatutário, que para ocupar cargo na administração precisa passar em concurso público. O concursado estatutário segue o chamado regime estatutário, uma espécie de regime trabalhista dos servidores, e tem também um regime de previdência próprio (RPPS).
FOTO: LUCAS JACKSON/REUTERS – 02.MAI..2012
Depois de três anos de serviço, os concursados estatutários adquirem estabilidade. Ou seja, depois desse período, eles só podem ser demitidos em condições específicas, como após um processo administrativo em que lhe seja assegurada ampla defesa.
São vários os objetivos da estabilidade: evitar que os funcionários sejam demitidos sempre que um novo governante é eleito, proteger os servidores de represálias em casos que afetem interesses e garantir que a máquina do Estado funcione de maneira constante.
É um tipo de medida adotada, em maior ou menor escala, na maioria dos países. Mas há também questionamentos. Os críticos geralmente falam que a estabilidade abre margem para que servidores acabem “se acomodando” e sendo menos produtivos, apesar de a estabilidade não ser garantia de uma permanência no cargo que independa da atuação do servidor concursado.
Existem ainda outras categorias de servidores, como é o caso dos chamados empregados públicos. Eles também passam por um processo seletivo, que funciona como uma espécie de concurso, para poder assumir o cargo. Mas diferentemente dos estatutários, estão sujeitos às regras da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho). Em tese, não têm estabilidade, a não ser quando a Justiça assim entende.
Segundo o professor da FGV Direito São Paulo Carlos Ari Sundfeld, no caso da União, os celetistas estão basicamente nas empresas estatais, já o servidor público estatutário está na administração direta e nas autarquias. “No caso dos municípios e dos estados é um pouco diferente, porque neles existe muito celetista, mesmo na administração direta”, diz Sundfeld.
FOTO: RICARDO MORAES/REUTERS – 10.SET.2020
Existem também os chamados temporários, que exercem função pública sem estarem vinculados a cargos (como no caso dos estatutários) ou empregos públicos (como no caso dos celetistas). São contratados para atender a necessidades temporárias ou de excepcional interesse público. Comumente se entende que eles seguem um regime especial, ou seja, seguem lei específica que regulamente a contratação temporária.
Sundfeld pontua que um dos motivos de a definição de “servidor público” ser considerada complexa é que ela pode ter diferentes contornos a depender do fim considerado. Em termos de benefícios, por exemplo, os temporários têm menos garantias que os estatutários. “E com certeza não têm a mesma remuneração”, acrescenta ele, que cita essa como uma das razões para que alguns estados cheguem a ter 50% dos seus professores, por exemplo, no regime temporário.
Os cargos de indicação política
Uma outra distinção importante é que, além dos cargos efetivos, existem os chamados cargos comissionados. São aqueles cuja indicação é política. Os cargos comissionados englobam os chamados DAS, sigla para Direção e Assessoramento Superior.
Via de regra, qualquer um pode ser nomeado para um cargo comissionado, respeitadas determinadas restrições que podem variar de caso a caso. Mesmo pessoas de fora da administração podem ser nomeadas para ocupar esses cargos, que não garantem estabilidade.
Esse tipo de cargo também pode ser ocupado por servidores de carreira, mas o fato é que a nomeação não ocorre por concurso, e sim de forma discricionária. Ou seja, a escolha ocorre por decisão de alguém, por isso se fala numa decisão essencialmente política.
Se um servidor de carreira perde o cargo comissionado, ele volta para suas funções originais, portanto não perde o emprego. Se um indicado de fora da administração perde o cargo comissionado, ele sai do governo.
FOTO: ANA VOLPE/AGÊNCIA SENADO
Apesar de serem minoritários no quadro geral, o número de cargos comissionados na máquina pública brasileira é considerado excessivo na comparação internacional, segundo estudiosos ouvidos pelo Nexo. Eles afirmam que isso tem como pano de fundo traços históricos de patrimonialismo e compadrio na máquina pública.
Há casos em que esses cargos acabam sendo usados em esquemas de corrupção: a pessoa é indicada para o cargo e acaba sendo pressionada ou já disposta a desviar recursos que vão parar em campanhas eleitorais dos padrinhos políticos ou mesmo no bolso desses padrinhos.
A complexidade na administração
Apesar dessas distinções iniciais, o panorama do serviço público no Brasil é amplo, de modo que existe uma série de outras figuras que compõem o panorama da prestação de serviços públicos.
Há, por exemplo, os funcionários terceirizados, os profissionais que assumem serviços pontuais, os trabalhadores de Organizações Sociais que atuam junto ao setor público, entre diversos outros. Esse último tipo de atuação ocorre especialmente nas áreas da saúde e da cultura. A gestão do Complexo Theatro Municipal em São Paulo, por exemplo, segue esse modelo.
FOTO: RAFAEL SALVADOR/THEATRO MUNICIPAL – DIVULGAÇÃO
THEATRO MUNICIPAL DE SÃO PAULO, NO CENTRO DA CIDADE
Embora os profissionais nesses diferentes regimes não sejam apontados como servidores públicos num sentido mais específico do termo, eles são tidos como relevantes para o funcionamento da máquina pública e das políticas públicas. Por causa disso, há estudiosos como a professora de administração pública da FGV, Gabriela Lotta, que consideram esses profissionais como servidores públicos do ponto de vista da função que exercem.
“O médico de uma Organização Social que está trabalhando na mesma política, servindo ao público, entregando o mesmo direito, ele é diferente em termos funcionais do que um funcionário público concursado? Não é”, afirma Lotta, também professora visitante em Oxford.
A comparação com a iniciativa privada
Há algumas semelhanças entre servidores públicos e profissionais da iniciativa privada. Num sentido mais básico, José dos Santos Carvalho Filho escreve em seu Manual de Direito Administrativo que ambos são trabalhadores: “Executam suas tarefas em prol do empregador (público ou privado) e percebem, ao final do mês, sua remuneração.”
FOTO: UESLEI MARCELINO/REUTERS – 25.SET.2015
Mas há também uma série de diferenças na atuação desses profissionais, a começar pelas próprias diretrizes do trabalho exercido: “As decisões de um servidor público sempre devem ser regidas para o que é o melhor para o público, e isso em geral é definido pela Constituição, é definido pelas leis, não é algo abstrato”, diz Lotta.
Já em termos práticos, os servidores muitas vezes encontram mais amarras para exercer o trabalho do dia a dia. Em linhas gerais, “o servidor público só pode fazer o que está previsto na lei, porque é a lei que resguarda e que garante o interesse público na ação do servidor”. “E o funcionário da empresa privada pode fazer tudo desde que não seja contra a lei”, lembra Lotta.
Gestores já apontaram esse aspecto como algo que dificulta a inovação na arena pública. O professor de gestão pública da USP Fernando Coelho, no entanto, diz que as amarras devem ser compreendidas como algo que faz parte da natureza das organizações públicas. “Tem que separar problema de paisagem, isso é uma paisagem do setor público”, diz.
Coelho afirma ainda que outra diferença que faz parte da “paisagem” do setor público é a natureza política das organizações. “Por mais que a função seja técnica, ela está dentro de um ambiente político. Então ela vai ter uma característica técnico-política”, destaca ele, segundo quem isso tem impacto em diferentes chaves: “Desde um sentido que pode ser positivo, de uma orientação política, de uma diretriz, até um sentido negativo, de uma interferência política do ponto de vista de interesse pessoal.”
Por fim, ele diz que, “como em qualquer profissão, no setor público é preciso ter um tipo de vocação”. “É um conjunto de características de sensibilidade social, de vocação no sentido de gostar do atendimento ao público, e de prezar muito por uma ideia de interesse público.”
QUANDO surgiu o conceito de servidor público
É possível identificar figuras que trabalhavam em funções relacionadas ao Estado desde a antiguidade. Posteriormente, na transição da Idade Média para a Idade Moderna, os Estados absolutistas também requeriam um corpo administrativo, por exemplo. Depois, houve um impulso para a estruturação de uma burocracia com bases mais “racionais”, conforme os estudiosos.
Fernando Coelho aponta “um desdobramento dos princípios da Revolução Francesa [de 1789] no direito administrativo, com a organização muito clara do serviço público a partir do século 19 e no século 20”. “A gente começa a ampliar essa ideia de um serviço público estável, permanente e meritocrático”, diz.
“É nesse processo de profissionalização da administração pública que se constrói a ideia de que nós não temos funcionários do rei, mas servidores que são do público”, diz Gabriela Lotta.
FOTO: FRENCH REVOLUTION DIGITAL ARCHIVE
ILUSTRAÇÃO DA QUEDA DA BASTILHA, MARCO DA REVOLUÇÃO FRANCESA
Já na história brasileira, é possível identificar no período da colônia figuras que cumpriam funções ligadas à organização administrativa, a exemplo da coleta de impostos. Isso num contexto de grande confusão entre o público e o privado, em que a administração era marcada “antes pela satisfação dos interesses econômicos da Coroa e privados da burocracia aristocrática, do que pela prossecução das necessidades coletivas da sociedade colonial emergente”, escreve o pesquisador Emerson Moura em artigo de 2016 sobre o tema.
Na segunda metade do século 18, no contexto das reformas pombalinas, que buscavam aumentar a renda da Coroa, e no cenário de substituição à educação jesuítica, houve a primeira experiência do que seria um concurso público no país, segundo artigo de Eneuton Dornelles Pessoa de Carvalho numa publicação do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) de 2011.
“Essa reforma [dos chamados estudos menores] compreendeu a mudança do método pedagógico e, pela primeira vez na administração colonial, a realização de concursos para a nomeação de funcionários de Estado, no caso, os professores régios. Em 1759, realizaram-se, na Bahia, exames de latim e retórica em que foram aprovados 19 professores”, escreveu o pesquisador. Segundo ele, porém, o contexto, era ainda de “adoção de resoluções casuísticas para as questões de Estado”.
No início do século 19, com a vinda da família real para o Brasil, há uma maior estruturação de um corpo administrativo e de “três grandes burocracias” que precedem a organização do funcionalismo, como destaca Fernando Coelho. “O Banco do Brasil, [fundado em 1808], é uma organização que inicialmente cumpriu um papel de uma formação de uma burocracia econômica”, afirma. “A burocracia militar, podemos pensar sobretudo a necessidade de organizar os militares e a forma como houve impulsos para a profissionalização [deles] a partir da guerra do Paraguai [iniciada em 1864]. E [havia] a burocracia de relações internacionais.”
FOTO: PILAR OLIVARES/REUTERS
A Constituição de 1824 já falava em “cargos públicos”. A Constituição de 1891, do período republicano, é a primeira a mencionar o termo “funcionário público”, categoria que passa a adquirir determinadas prerrogativas por meio de leis.
A partir da década de 1930, sob o governo de Getúlio Vargas, há um impulso para a organização da burocracia. A Constituição de 1934 é a primeira a ter seção específica para o funcionalismo público. “Ela é muito definida como a Constituição que começou a organizar uma administração pública em bases Weberianas, uma administração com um corpo de funcionários públicos permanentes, recrutados por concurso, para cumprir as funções públicas”, relembra Sundfeld. Isso num contexto também marcado pelo patrimonialismo.
Um dos marcos no processo de busca pela profissionalização da burocracia foi a criação do chamado DASP (Departamento Administrativo do Serviço Público), órgão previsto pela Constituição de 1937, do Estado Novo, com o objetivo de organizar e racionalizar o serviço público no país, num contexto de centralização e concentração do poder do Estado. O órgão acabou esvaziado após a queda de Vargas em 1945.
FOTO: ARQUIVO/CPDOC-FGV
CARTAZ DO DASP DE 1942
Num contexto que era de acentuação das diferenças entre os servidores públicos e os trabalhadores da iniciativa privada, surgiu também nos anos 1940 uma música que daria origem à utilização do termo “barnabé” como uma referência aos servidores. Composta por Haroldo Barbosa e Antonio de Almeida, ela remete ao funcionário de baixo escalão. O termo acabou conhecido como uma sátira à figura do funcionário permanentemente sem dinheiro e desinteressado.
Um processo ‘em aberto’
No geral, o processo de profissionalização da burocracia caminhou de forma “gradual e incremental”, nas palavras de Fernando Coelho, e avançou em estados e municípios com a Constituição de 1988. Foi ela que consagrou o uso do termo “servidor público”, já que antes o que se costumava utilizar era o termo “funcionário”, considerado mais restrito.
Em 2021, a profissionalização do serviço público é um processo ainda em aberto, com diferentes graus de maturidade nas esferas da federação e nas diferentes áreas de cada órgão, com desigualdades dentro do próprio funcionalismo, e com cargos que também acabam sendo usados como moedas de troca política.
QUEM são os servidores públicos
No Império e no período de constituição da República, as ocupações no setor público brasileiro “eram vistas como um privilégio, como uma sinecura, e beneficiavam, com cargos na administração pública, alguns indivíduos ligados à estrutura de poder e à elite econômica”, escreve o pesquisador Fernando Mattos em artigo sobre o tema publicado em 2015.
O período que se sucede conta com uma maior estruturação do serviço público. Conforme aponta Eneuton Carvalho, isso ocorre também em meio à permanência de parte desses traços históricos: “Muitas vezes, a coexistência de estruturas e órgãos ultrapassados com outros instituídos de forma moderna, isto é, tecnocrática e centralizada, deu a tônica da expansão da máquina pública no país.”
Segundo Mattos, o número de funcionários públicos no Brasil era reduzido nas primeiras décadas do século 20. De acordo com ele, eram cerca de 200.000 os funcionários públicos no Brasil em 1920. Duas décadas depois, 1940, não passavam de 500.000. “Apenas em 1950 o contingente total de funcionários públicos no País chegou a 1 milhão, atingindo 1,6 milhão em 1960 e 2,7 milhões em 1970”, escreve.
Já mais recentemente, conforme o Atlas do Estado Brasileiro produzido pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), havia 9,46 milhões de pessoas em vínculos públicos no Brasil em 2019, como mostra o gráfico abaixo.
PESSOAS COM VÍNCULOS POR SETOR
Do total de vínculos públicos, a maior parte se dá na esfera municipal, numa porcentagem que cresceu nos últimos anos. “A expansão do número de vínculos no setor público se concentrou nos municípios”, aponta nota técnica do Ipea sobre o funcionalismo.
A EXPANSÃO DE VÍNCULOS EM MUNICÍPIOS
“O movimento de municipalização da burocracia pública brasileira é uma tendência que ocorre desde os anos 1950, acentuou-se nos anos 1970 e, sobretudo, após a promulgação da Constituição Federal de 1988”, diz a nota do Ipea, que aponta também que “os municípios ampliaram suas competências e atribuições, incluído o provimento de serviços que integram o núcleo do Estado de bem-estar”. O texto aponta também como fator que contribuiu para essa expansão o aumento no número de municípios no país.
Também de acordo com o texto, “nos municípios, por exemplo, 40% das ocupações correspondem aos profissionais do ‘núcleo-duro’ dos serviços de educação ou saúde: professores, médicos, enfermeiros e agentes de saúde. O cenário é similar nos governos estaduais e, considerando ainda os profissionais de segurança pública, o percentual das três áreas pode alcançar 60% do total de vínculos.”
A diversidade em questão
O perfil dos servidores públicos também espelha desigualdades que são vistas em diversas outras áreas da sociedade brasileira. No nível federal, por exemplo, onde a remuneração tende a ser maior, mulheres e negros sao minoria entre os servidores.
O PERFIL NO SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL
Em 2014, ações afirmativas foram adotadas no serviço público federal, após a aprovação da lei 12.990. Pela legislação, 20% das vagas em novos concursos públicos devem ser preenchidas por candidatos negros. Não há política específica em nível federal para o preenchimento de vagas em concursos por mulheres ou pessoas indígenas.
Os entraves à maior diversidade também ficam evidentes na composição dos cargos DAS. Os cargos de DAS-5 e DAS-6 são os mais elevados nos requisitos e funções, e também possuem remuneração mais alta. Ambos possuem um percentual maior de pessoas brancas e homens.
OS ENTRAVES À DIVERSIDADE EM CARGOS D-A-S
ONDE há mais servidores públicos no mundo
Entre os países que mais têm mais pessoas no setor público em relação ao total de empregados estão locais como Palau, Djibouti e Rússia. Isso segundo os dados mais recentes de cada país disponibilizados pelo Grupo Banco Mundial. No gráfico abaixo é possível visualizar os países que têm maior proporção de servidores em relação ao total de empregados. São 132 países que constam no levantamento.
PERCENTUAL DE EMPREGO NO SETOR PÚBLICO
Os europeus Bélgica, Dinamarca, Noruega e França também aparecem entre os países que figuram entre os 15 primeiros nessa proporção. O levantamento não inclui dados de alguns países como Cuba, Omã e Azerbaijão, que aparecem nas estatísticas da Organização Internacional do Trabalho como países que também têm das proporções mais altas de empregados no setor público em relação ao total de empregados.
Considerando os dados do Grupo Banco Mundial, do gráfico, o Brasil aparece atrás de países como Estados Unidos, Argentina, França, Canadá, África do Sul, entre vários outros, e aparece acima de países como México, Paraguai, Peru e Bolívia.
Outros indicadores confirmam que o país está pouco acima da média da América Latina nesse índice, mas abaixo da média dos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico).
No geral, o Brasil tem proporcionalmente menos servidores públicos do que países que se propõem a ter um tamanho de Estado parecido em termos de bem estar social, segundo os especialistas. “Falta médico, falta professor, falta profissional da assistência”, destaca Lotta.
COMO o serviço público impacta o Orçamento
Apesar de o Brasil ter uma proporção de servidores públicos relativamente menor que outros países comparáveis, o funcionalismo brasileiro é dos mais caros do mundo, segundo levantamentos recentes.
Segundo um levantamento de 2020 elaborado pela CNI (Confederação Nacional da Indústria), o Brasil ocupa a sétima posição num ranking dos países que mais gastam com o funcionalismo em proporção do PIB (Produto Interno Bruto). Foram analisadas as contas de 70 países com maiores gastos. O percentual de gastos brasileiros superou os 13%. Com isso, o país ficou atrás de: Arábia Saudita, Dinamarca, Jordânia, África do Sul, Noruega e Islândia.
Um levantamento da Secretaria do Tesouro Nacional a partir de informações do Fundo Monetário Internacional também coloca o Brasil no topo dos países com maior despesa com o funcionalismo.
FOTO: ADRIANO MACHADO/REUTERS – 03.JAN.2019
SEDE DO MINISTÉRIO DA ECONOMIA EM BRASÍLIA
“Em termos comparativos, o gasto do setor público brasileiro com folha de pagamentos é alto para os padrões internacionais e o número de funcionários públicos no Brasil não é extraordinariamente alto”, diz um relatório do Banco Mundial sobre o tema lançado no final de 2019.
O documento indica que servidores públicos como um todo tinham, na média, salários 8% maiores que trabalhadores similares do setor privado. Isso inclui todos os que foram considerados como servidores públicos, mas trata-se uma média, de modo que o dado não reflete desigualdades dentro do próprio funcionalismo.
O próprio documento diz que “existe uma alta dispersão salarial entre servidores”. “Estima-se que os servidores públicos federais tinham em 2017 salários 96% maiores que trabalhadores do setor privado formal e servidores públicos estaduais, 16%, em média”, diz o texto. “Servidores públicos municipais tinham salários similares aos do setor privado, em média.”
Estudiosos da administração pública destacaram ao Nexo que os gastos elevados com o funcionalismo têm como pano de fundo as desigualdades e distorções, com carreiras de elite que são privilegiadas e acabam puxando a média dos gastos para cima.
Dados do Ipea mostram que as maiores remunerações, por nível federativo, estão concentradas nos servidores federais – que são minoria. Em termos da distribuição de remuneração nos Poderes, a concentração dos maiores valores é no Judiciário.
Em coluna publicada no Nexo em setembro de 2021, a professora do Departamento de Ciência Política da USP Marta Arretche destacou: “segundo estudo publicado pelo IPEA em agosto deste ano, metade do funcionalismo público brasileiro recebia até R$ 2.727 em 2018. Um quarto dos servidores do executivo municipal (o que representa dois terços do total de funcionários públicos) recebia até R$ 1,3 mil em 2018 (pouco mais do que o salário mínimo).”
“Temos uma desigualdade salarial muito grande no serviço público brasileiro, com pouquíssimas carreiras que são muitíssimo bem remuneradas, principalmente as carreiras do Judiciário, Ministério Público e das Forças Armadas. Fica parecendo que a gente gasta muito, mas na verdade a gente gasta muito de forma concentrada, e não gasta com o que deveria gastar”
Gabriela Lotta
professora de administração pública da FGV e professora visitante de Oxford, em entrevista ao ‘Nexo’
“A ideia de máquina pública inchada às vezes é uma visão generalizante. Ela pode ser inchada em algumas áreas, mas às vezes ela é enxuta demais em outras. A nossa força de trabalho no setor público é abaixo da média para Estados cujo papel se assemelham ao Brasil, mas ela é mal distribuída e, dado alguns privilégios que estão em carreiras de elite, lembrando que carreiras de elite são a minoria, ela se torna cara”
Fernando Coelho
professor de gestão pública da USP, em entrevista ao ‘Nexo’
Diferentes diagnósticos fizeram emergir a pauta de uma reforma administrativa em momentos diversos na história recente. As promessas muitas vezes envolvem a limitação dos gastos com o funcionalismo ou o corte do que é apontado como privilégio, com resultados muitas vezes controversos.
No contexto pós-redemocratização, houve uma iniciativa de reforma sob o governo de Fernando Collor. Anos depois, o processo ainda era considerado nebuloso. Na segunda metade dos anos 1990, o governo de Fernando Henrique Cardoso pautou a temática de reforma gerencial. Conforme Eneuton Carvalho, porém, “os balanços da reforma apontam que, por vários motivos, ela foi inconclusa e parcial.”
O governo do presidente Jair Bolsonaro defende uma reforma administrativa, mas não havia conseguido aprová-la até dezembro de 2021. Especialistas críticos à medida apontam que a reforma proposta não altera “privilégios” de servidores em carreiras de elite.
POR QUE o serviço público é importante
O primeiro ponto destacado por especialistas quanto à importância do serviço público é que é por meio dele que o Estado garante aos cidadãos o acesso a serviços, políticas e direitos no geral.
“É por meio do serviço público que a gente tem acesso a saúde, a educação, a vacinas. Nosso acesso ao Estado e aos direitos que o Estado nos garante se dá via servidor público”
Gabriela Lotta
professora de administração pública da FGV e professora visitante de Oxford, em entrevista ao ‘Nexo’
Trata-se de uma função que, conforme lembra Fernando Coelho, se insere no contexto de um pacto social estabelecido pela Constituição. “Quem define o tamanho do Estado e o que o Estado deve fazer é a própria sociedade. Nós fizemos essa definição pela última vez na Constituição de 88”, disse ele. “O serviço público é importante para traduzir essa pactuação.”
“Num país como o Brasil, de tamanha desigualdade, essa função se torna ainda mais essencial”, acrescentou o professor. “O ator capaz de agir sobre essas desigualdades, criando oportunidades, ou trabalhando por critério de equidade, é o próprio Estado”, disse Coelho, que aponta ainda uma importância dos servidores para traduzir uma função econômica do Estado, de atuar na regulação, na provisão de bens públicos e de trazer a perspectiva de um projeto de desenvolvimento.
“O serviço público está ali como o instrumento habilitador de três grandes funções: a função política do Estado, de traduzir o pacto político que fez com a sociedade, a questão social, considerando no nosso caso as desigualdades, e a função econômica de prover bens públicos, dentro de uma perspectiva de um projeto de desenvolvimento”
Fernando Coelho
professor de gestão pública da USP, em entrevista ao ‘Nexo’
Gabriela Lotta aponta também que os servidores públicos são “uma parte fundamental do funcionamento da democracia”. “Porque a democracia só opera quando você tem um Estado que está voltado ao povo, e não aos interesses particulares de determinado político”, disse ela. “É o servidor público que resguarda a legalidade da ação do Estado, um Estado que tem continuidade baseada na lei.”
EM ASPAS: frases sobre servidores
“Se não fosse a estabilidade, ele não estaria aqui sentado com a coragem que ele tem de denunciar isto tudo que está ocorrendo”
Luis Miranda (DEM-DF)
deputado federal, em depoimento à CPI da Covid sobre denúncias feitas por seu irmão relacionadas às negociações de vacinas
“Esta é a segunda lei que eu tenho a honra de promulgar com ações afirmativas, para fechar um fosso secular de direitos e oportunidades engendrados pela escravidão e continuados pelo racismo, ainda existente entre negros e brancos em nosso país”
Dilma Rousseff
ex-presidente da República, em declaração de junho de 2014, quando sancionou a lei de cotas no serviço público
“Eu sou o servidor público temporário número um”
Jair Bolsonaro
presidente da República, em declaração durante cerimônia alusiva ao Dia do Servidor Público em 2021
“Muitos colegas têm sido perseguidos por exercerem estritamente suas atribuições legais. Isso perverte completamente o espírito do serviço público. É inaceitável que haja esse clima que se instalou em vários órgãos, Inclusive com notícias de que o governo monitora as redes sociais de servidores porque não aceita manifestações contra o governo”
Rudinei Marques
auditor federal de finanças e controle e presidente do Fórum Nacional Permanente de Carreiras Típicas de Estado, em declaração ao portal Uol em 2020
“Crise sem precedentes, com perseguição aos servidores, assédio moral, uso político-ideológico da instituição pelo MEC e falta de comando técnico no planejamento dos seus principais exames, avaliações e censos”
servidores do Inep
em documento com denúncias de assédio e interferência no órgão em 2021
“O cara virou um parasita”
Paulo Guedes
ministro da Economia ao falar sobre servidores públicos em 2020
“Eu estava fazendo um discurso a respeito da necessidade de controlarmos os gastos dos entes das unidades subfederativas [estados e municípios]. Tem centenas de municípios que não conseguem sequer pagar a própria folha (…). E eu disse que isso é como se fosse uma unidade que está ficando parasitária”
Paulo Guedes
ministro da Economia em declaração em 2021, ao tentar justificar sua declaração anterior sobre servidores públicos
NEXO JORNAL