“Comecem a produzir floresta como subjetividade, como uma poética de vida”, diz Ailton Krenak a plateia portuguesa
Líder indígena participou de evento durante festival de cinema realizado em Porto e falou a um público predominantemente jovem (Foto: Melanie Pereira/PortoPostDoc)
Por Vilma Reis, especial para a Amazônia Real
Porto (Portugal) – O que uma liderança indígena do Brasil pode fazer num encontro português de cinema? Sugerir reflexão. E foi isso (e não só) o que Ailton Krenak fez durante sua participação no Porto/Post/Doc, um festival de cinema do real (documentários), cujo tema e programação gravitaram em torno de um de seus livros, “Ideias para adiar o fim do mundo”. O evento aconteceu na última semana de novembro (dia 25) e teve o líder indígena, pensador e escritor como principal convidado.
Lançado em 2019, o livro é uma adaptação de duas conferências e uma entrevista realizadas em Portugal, entre 2017 e 2019. Em 2020, ano da explosão da pandemia da Covid-19, o livro teve uma repercussão entre leitores brasileiros, tornando-se referência da epistemologia indígena e, sobretudo, do povo Krenak, do qual Ailton é a maior referência.
Durante uma hora e meia de conversa em que participou remotamente a partir da Terra Indígena Krenak, em Minas Gerais, Ailton esgarçou a discussão sobre o que temos feito ao planeta e, mais do que qualquer outra coisa, sobre aquilo que podemos fazer. Com uma argumentação rente ao osso dos temas ambientais, Ailton Krenak instigou os espectadores portugueses a pensarem sobre o garimpo no rio Madeira, a responsabilidade das indústrias com o lixo, o conceito de florestania e ainda a cosmologia de origem do povo Yanomami retratada no filme “A Última Floresta”, de Luiz Bolognesi.
Ailton participou de toda a construção da programação e escolha dos filmes apresentados durante o festival, numa ponte virtual entre o Porto e a aldeia Krenak. Foram escolhidas obras com espinha dorsal feita de urgências sociais e climáticas.
Dario Oliveira, diretor do festival, detalha o nascimento da parceria: “Comecei por ler o livro Ideias para adiar o fim do mundo e tudo o que eu tinha pensado para o festival estava lá. Enviei a ele os filmes que queria incluir neste programa (por volta de 30) e a cada vez que falávamos aprendia imenso. Eu o considero um mestre. Nossa conversa nunca foi de igual para igual. Sou um aluno sempre pronto a fazer perguntas e aprender com Ailton”, revela.
A partir do nosso quintal
As balsas enfileiradas, um exército sombrio
“A terra é maravilhosa e tem tudo para todos nós. Temos é que mudar essa racionalidade, por isso tenho feito um debate sobre o Antropoceno que é mais ou menos assim: ‘como é que a gente foi cair no conto do vigário desse? De acreditar que o tempo é dinheiro? Ou que a gente pode se apropriar da vida na terra?’ A vida na terra é maravilhamento não dá pra ninguém se apropriar dele”. Com estas indagações, e aproveitou o momento e espaço para pedir à plateia de participantes portugueses que produzissem mais florestas, sem necessariamente plantar árvores.
“Comecem a produzir floresta como subjetividade, como uma poética de vida, cultivem essa lógica dentro de vocês, diminuindo a velocidade, essa tensão que a vida implica, e criem uma essência afetiva, colaborativa, que é a natureza da floresta.”
A Última Floresta
Para o espanhol, o filme faz o retrato de uma luta e, por muito mal que as coisas estejam sempre vai ter alguém lutando. “Pode ter beleza e resistência, o nosso cinema pode contribuir com esperança. Em 2019 encontrei o Ailton em Lisboa, numa Mostra Ameríndia sobre os percursos do Cinema Indígena no Brasil, e vimos um filme chamado Já me transformei em imagem (Zezinho Yube Hunikui, 2008) que nunca mais saiu da minha cabeça. trabalhei em “A última floresta” tentando fazer um retrato sem ‘instrumentalizar’ ou ‘objetizar’ os Yanomami”, explica Marquéz.
Em 2017, o cineasta carioca Marco Altberg registrou a caminhada de Ailton Krenak no documentário “O sonho da pedra”. Numa das cenas do filme, o escritor, filósofo, jornalista e líder indígena aborda Carlos Drummond de Andrade e seu poema “Confidência do Itabirano” que termina tragicamente a constatar que, no futuro, Itabira será apenas uma fotografia na parede.
Ailton conta que o poeta mineiro passou boa parte da vida sofrendo a humilhação de ver tudo o que lhe era sagrado se transformar em poeira e mesmo assim criava poesia e beleza a ver se conseguia despertar o interesse de alguém para que não permitissem que o vale do rio Doce virasse apenas aquele retrato na parede.
“Se todas as nossas paisagens virarem os retratos descritos por Drummond, só nos sobrará o cinema. Muito obrigado por me ouvirem a falar obviedades”, agradece Ailton Krenak.
Vilma Reis é jornalista, paraense, estuda e trabalha em Portugal. Cria da Universidade Federal do Pará (UFPA), hoje é doutoranda em Ciências da Comunicação na Universidade de Coimbra onde estuda a história da Etnomídia indígena brasileira.