Quem comanda uma ação dessa envergadura não pode mesmo ter tolerância com o garimpo ilegal dentro das terras indígenas, uma simpatia disseminada entre os militares na Amazônia. Basta ouvi-los informalmente para entender que eles vêem o garimpo como uma espécie de colonização necessária para a “integração e a soberania nacionais”, papel semelhante ao dos bandeirantes dos séculos 16 e 17 e dos projetos megalomaníacos da ditadura militar nos anos 70 alimentados pelo teoria conspiratória da “internacionalização” da Amazônia.
O servidor da Casa Civil da Presidência da República escolhido para a chefia da Casa de Governo em Roraima, o gaúcho Nilton Tubino, 63, tinha, antes de 2012, pouca experiência no tema das terras indígenas. Ele registrava uma longa passagem como assessor parlamentar na Câmara dos Deputados. Foi chefe do gabinete do deputado federal Adão Pretto (PT-RS), um parlamentar falecido em 2009 cuja trajetória esteve vinculada ao tema da reforma agrária.
Há 12 anos, contudo, já no primeiro governo de Dilma Rousseff (PT-RS), Tubino passou a atuar no campo da proteção das terras indígenas. Participou, desde então, de quatro operações de retirada de invasores em diferentes terras indígenas, três das quais desencadeadas no governo Lula 3 (Alto Rio Guamá e Apyterewa, no Pará, e Yanomami). Tubino, que se mudou para Roraima de mala e cuia, revelou-se o coordenador certo na hora certa.
Para todas essas ações, o governo mobilizou centenas de servidores e diversos órgãos como o Ibama, a Funai, a Polícia Federal, militares e a Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Na Apyterewa, mais de 2 mil invasores foram expulsos em 2023. Simultaneamente ao caso Yanomami, o governo também desencadeou ações do gênero nas terras Trincheira Bacajá, Karipuna e Munduruku.
Todas essas terras têm uma característica em comum: durante o governo Bolsonaro, a destruição e a dilapidação das riquezas naturais e a degradação do modo de vida dos indígena foram, para dizer o mínimo, toleradas de 2019 a 2022.
Os invasores eram apoiados, exaltados e até recebidos em gabinetes de Brasília por políticos bolsonaristas e membros do Executivo, como fez o então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, com um grupo de garimpeiros do Pará. As poucas ações realizadas contra essas invasões foram pontuais, débeis e quase sempre por pressão do Judiciário.
Altos membros do governo Bolsonaro, como o vice-presidente e general da reserva Hamilton Mourão, diziam que era muito difícil ou inútil retirar os invasores. Complexo era a palavrinha da moda. Expulsar os garimpeiros da terra Yanomami? “Complexo” demais.
Em 2021, Mourão disse que “a situação” dos Yanomami era “complicada” e que a solução passaria não pela retirada dos invasores, e sim pela regularização do garimpo. “A Constituição prevê isso e enquanto não se regulamentar vai continuar esse eterno jogo de gato e rato”, relativizou Mourão. Era assim que as coisas eram repassadas pelo bolsonarismo tanto aos indígenas quanto aos garimpeiros: não adianta fazer nada.
Mourão disseminava desinformações sobre a terra Yanomami, como o projeto Fakebook Eco exaustivamente demonstrou no início de 2023. Em 2020, em meio à crise da pandemia da Covid-19, ele sugeriu que os indígenas bebessem água diretamente dos rios, muitos dos quais hoje contaminados pelo mercúrio do garimpo ilegal que rasga suas terras.
Mourão acumulou a presidência de um certo Conselho Nacional da Amazônia Legal (CNAL), criado por ele e Bolsonaro cheio de militares e sem representantes indígenas e do Ibama e da Funai. Documentos trazidos à tona pela Pública revelaram que, ao longo das suas dez reuniões ordinárias, em apenas uma o tema Yanomami foi discutido pelo CNA – sem qualquer ação prática.
De acordo com a documentação, Mourão reconheceu a invasão garimpeira no território, mas nada fez de concreto para solucioná-la, ponderando apenas que seria necessária uma “operação de grande envergadura”. Pois bem, essa operação só foi feita no governo Lula 3.
As vozes indígenas eram repetidamente abafadas e jogadas para escanteio. A maior liderança Yanomami, Davi Kopenawa, já disse que enviou cerca de 60 pedidos de socorro ao governo Bolsonaro, todos olimpicamente ignorados. Dario Yanomami, filho de Kopenawa, relatou ter estado em audiência com o próprio Mourão, em Brasília. O resultado? “Não aconteceu nada.”
O resultado do virtual abandono do Estado na terra Yanomami produziu os efeitos que hoje o mundo inteiro conhece. As mortes por desnutrição cresceram 331% no período 2019-2022 na comparação com os quatro anos anteriores. Em dezembro de 2022, a Pública revelou que as crianças Yanomami morriam 13 vezes mais por causas evitáveis do que a média nacional.
Desde 2023, a Polícia Federal investiga os crimes cometidos contra os Yanomami. O delegado responsável pelo inquérito, contudo, já foi trocado quatro vezes. Atualmente, quem toca o caso mora em Minas Gerais, e não em Roraima, mas a PF diz que a investigação prossegue. Vamos ver.
A tragédia que atingiu os Yanomami era tão grande que dificilmente seria alterada em curto prazo. No primeiro ano do governo Lula, o território registrou 363 mortes, 20 acima das registradas em 2022. Mas a subnotificação dos casos na era Bolsonaro impede uma comparação confiável. Agora o governo diz que houve uma redução de 68% nos “óbitos por desnutrição no primeiro semestre de 2024 em comparação a 2023”.
Os resultados, a médio e longo prazos, das ações e operações desencadeadas pelo governo Lula 3 na terra Yanomami e em outros territórios indígenas ainda demandam muita atenção e análise. Mas reconhecer que ações positivas têm sido feitas para resgatar a dignidade dos povos indígenas não representa triunfalismo oficial. A desgraça bolsonarista é de fato incomparável. |