A denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR) contra o ex-presidente Jair Bolsonaro por participação em um golpe de Estado tem pontos altos e baixos, provas robustas e lacunas, certezas bem apresentadas e algumas ilações.
Pode não ser a peça dos sonhos, em especial sobre o exato papel de Bolsonaro no plano “Punhal Verde e Amarelo”. Mas é uma descrição convincente sobre o risco vivido pelo país por obra do então presidente. Abriu-se o abismo da violência política e do retorno da ditadura que ele tanto exaltou, e isso jamais deve ser esquecido quando se analisa a denúncia da PGR.
A verossimilhança da acusação vem, por ironia, do próprio comportamento público de Bolsonaro nas últimas três décadas. Ele desejou e defendeu a ruptura democrática de 1964, inclusive exaltando um notório torturador e lamentando que a ditadura não tivesse matado 30 mil brasileiros. Ou que o Exército não tenha exterminado todos os indígenas brasileiros.
Por isso, quando a PGR diz que Bolsonaro, durante a Presidência, teve um papel ativo num plano de ruptura institucional, soa como algo absolutamente natural e lógico. Até mesmo esperado. E quando seu ex-braço-direito, o tenente-coronel Mauro Cid, homem de confiança e da estreita convivência do então presidente, diz que Bolsonaro trabalhou para convencer os três comandantes militares e o ministro da Defesa a virar a mesa, parece inteiramente coerente com a trajetória do ex-deputado.
Por outro lado, quando Bolsonaro agora tenta se apresentar como um democrata, temos uma completa dissonância. Foi exatamente a ditadura o que ele sempre defendeu como regime político. Carece de sentido dizer, como fizeram na semana passada um de seus filhos, Flávio, e o líder da oposição ao governo, Luciano Zucco (PL-RS), que a denúncia é “uma peça de ficção”. Ficção seria descrever Bolsonaro como um democrata.
A investigação da Polícia Federal (PF) demonstra que foi um golpe evitado por poucas pessoas aparentemente movidas por uma mistura de sentimentos, incluindo o medo de dar errado. O risco era enorme para o país, mas também para os conspiradores. No entorno do presidente, vê-se que a torcida era tremenda para uma insurgência militar chamada de “intervenção”. Embora hesitasse, Bolsonaro deu um passo além, e assim deixou escancarado um ponto indesmentível da denúncia da PGR.
Não há mais dúvida de que Bolsonaro pressionou os militares a apoiar a decretação de um “estado de sítio” ou de um “estado de defesa”, eufemismos para um ato de exceção que, na prática, iria impedir a posse do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva.
Desde que uma chamada “minuta do golpe” foi apreendida na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres em janeiro de 2023, Bolsonaro foi ajustando e calibrando sua versão. Em um primeiro momento, em junho de 2023, ele disse o seguinte: “Não tomei conhecimento desse documento, dessa minuta”. Porém, mencionou enigmaticamente que “estado de defesa é previsto na Constituição”.
Após as investigações da PF avançarem, o tom de Bolsonaro mudou. Até que, em novembro de 2024, já acuado pelas revelações da PF, ele admitiu publicamente ter discutido com os militares a hipótese dos estados de exceção. Em 2022, porém, ele escondeu tal fato dos brasileiros. A maquinação não podia vir a público.
É difícil entender o motivo pelo qual a PGR não incluiu, na denúncia, esse reconhecimento de Bolsonaro. Ele acabou – forçado pelo desenrolar dos acontecimentos – corroborando trechos centrais da delação de Mauro Cid e dos depoimentos de dois comandantes militares, Freire Gomes (Exército) e Baptista Júnior (Aeronáutica). A ausência da palavra de Bolsonaro é uma das lacunas na denúncia que citei acima. Talvez a PGR tenha entendido que uma entrevista fora dos autos do processo não poderá ser usada no julgamento. Mas abordá-la não iria macular em nada a peça.
Bolsonaro afirmou em novembro de 2024: “O que está dentro da Constituição você pode utilizar. E eu batia muito na questão do estado de sítio”. Sem dúvida, “batia” nos comandantes militares. Ocorre que o estado de sítio, uma exceção gravíssima, que na prática extermina o estado democrático de direito, embora previsto no artigo 137 da Constituição, pode ser decretado pelo presidente da República desde que “ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional”. É a mesma necessidade para a decretação do estado de defesa.
O Conselho da República é formado pelo vice-presidente da República, pelos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado, líderes da maioria e da minoria das duas Casas do Legislativo, o ministro da Justiça e seis cidadãos brasileiros natos com mais de 35 anos de idade, indicados pelo presidente e pelo Congresso Nacional.
Por sua vez, o Conselho de Defesa Nacional é formado pelo vice-presidente da República, quatro ministros de Estado e pelos comandantes militares, mas também pelos presidentes da Câmara e do Senado. |